sábado, 21 de novembro de 2009

"TUDO POR NADA..."

Tudo por nada...

(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza

para a Eliana, minha cunhada, com carinho especial

Podem acreditar piamente no que direi agora. Depois que visitei minha cunhada Eliane, no hospital, fortaleci, dentro de mim, a certeza de que não somos nada. Apenas e tão somente um amontoado de carne em constante estado de decomposição. Não passamos de tecido deteriorado, malcheiroso e podre. Isso mesmo: podre. Digo isto, porque até bem pouco tempo, a mulher de meu irmão esbanjava vida e saúde. Saia cedo para vender roupas de porta em porta, intencionando ajudar o marido que montava ventiladores de teto. Não que precisassem: tinham um luxuoso e confortável apartamento, carro do ano, alguns trocados no banco para não acorrerem à preocupação de fazer alguma coisa às pressas para colocar na mesa dia seguinte. Mas a moça não era de ficar quieta. Havia uma magia perene em torno da sua áurea, que a deixava em constante ebulição. Em nome dessa chama que nunca se apagava a bela reinava absoluta. Simplesmente se punha em campo, não se quedava a espera que a grana do supermercado ou do açougue caísse do céu e parasse em sua bolsa de mãos beijadas. Jamais!

Eliana arregaçava as mangas e se punha em polvorosa, com todo o gás. Pau pra toda obra, corria paralelo ao companheiro para ajudar no equilíbrio das despesas mais prementes. Econômica aos extremos chegava a dar no saco. Parecia uma chata de galochas, regando comida, oferecendo as visitas um cafezinho requentando com pão dormido e manteiga rançosa. Não gastava atoa, com besteiras, tinha os pés firmes no chão e muito discernimento com relação ao futuro que almejava construir. Algumas pessoas mais chegadas afirmavam que a Eliana pensava “não com o coração, mas com a cabeça fria”.

Todavia, de repente, o inesperado bateu à porta. Em conseqüência, os sonhos que acalentava, pararam junto com a sua altivez num leito de hospital. A partir daí passou a definhar. Os movimentos das mãos e dos pés cessaram, o rosto perdeu a cor tranqüila e os olhos que brilhavam intensamente se perderam num labirinto sem volta. Não ficou só nesse quadro: o resto do corpo atrofiou. A esperança perdeu o viço, os dias se tornaram compridos demais, as noites melancólicas e insidiosas. Sua via crucis foi tão penosa que num dado momento pintou no seu caminho uma sala fria de UTI. Quando se viu fora dela, precisaram colocar uma sonda para que fizesse as necessidades fisiológicas sem maiores problemas.

Hoje a Eliane vive atrelada a uma máquina e a mercê de um infindável coquetel de antibióticos. Não reconhece os parentes mais próximos. Troca nomes, não pergunta pela filha Carol, não sorri, não, chora, não tem emoções, enfim, parece vegetar uma eternidade mórbida, depressiva, embora esteja, ainda, no albor da juventude. Assistida pela mãe, pelo meu irmão e pelas irmãs, Eliana toca os dias, sem a expectativa de voltar ao normal. De poder sair andando a passos próprios, de chegar até a janela e espiar para a rua, sem precisar fazer uso da cadeira de rodas; ou de tomar, quem sabe, um banho de chuveiro sem que alguém tenha que vir lhe amparar. Ou por outra: de se enxergar defronte ao espelho a pentear os cabelos, a passar um batom, escolher um vestido no guarda roupa; se entregar, ardorosa e impaciente, num sorriso largo a esperar pela chegada do marido.

O Cláudio, meu irmão, por tudo o que vem passando parece ter envelhecido alguns anos. Profundamente abatido, derribado e melancólico, se transformou numa criatura de gestos nervosos, cheia de tiques involuntários. A dor física que lhe invadiu, parece pequena perto da possibilidade de uma possível separação que se avizinha. Claudio, na verdade, se trancou numa redoma misteriosa, enigmática, desconhecida e estranha. Ficou desprotegido, encurralado entre a cruz e a espada, preso aos fios de uma esperança desfeita, tentando recompor o que sobrou da sua família que, de repente se quebrou como um bibelô de cristal. Sozinho, com a filha, tenta seguir adiante, como se vivesse uma orfandade anunciada. O Cláudio não fala, mas com certeza, se questiona a todo o momento, se quebra em perguntas sem respostas e, pior, desconhece como será o futuro que ainda está envolto pelo incerto amanhã.

Diante dessa moldura desoladora, procuro lembrar a Eliana nos áureos tempos em que gozando saúde plena, não sabia o que era tirar uma folga para descansar. De coração grandioso, muitas vezes doou roupas da Carol, como dezena de brinquedos, para que eu levasse para minhas filhas Amanda e Luana. Uma vez, e isso não faz muito tempo, foi comigo numa loja e abriu um crediário em seu nome e por causa desse seu gesto de solidariedade a toda prova, pude dar de presente uma boneca para a Luana, que aniversariava. O que estou querendo dizer, afinal, é que não sei por quanto tempo ela ficará nesse quadro mórbido de inquietações ásperas à espera que alguma coisa, de um momento para outro, mude para melhor. É dolorosa a espera. Mais ainda, a incerteza. Entre a espera e a incerteza, surge outra aliada igualmente infame: a desolação. A desolação fere, melindra, magoa, aflige, conturba. É como a dor. A dor nada mais é que um fechar de porta entre o homem e Deus. É no momento de intensa dor, ou mais precisamente quando ela se torna lancinante que damos um tempo na nossa desgraça e lembramos da existência do Altíssimo. Às vezes precisamos ter a porta fechada, na cara, para nos enchermos do Espírito do Bem Aventurado e voltarmos a ser totalmente felizes. Somente nas horas amarga lembramos que a benignidade do Pai é gratuita e infinda.

Quero, todavia, recordar da minha cunhada, não vestida naquelas roupas esquisitas que os doentes usam nos hospitais. Também me recuso a aceitar o fato de vê-la submissa, dependente, jogada à sorte, subordinada a uma enfermeira de rosto amarrado que deu o ar da graça para trocar, de má vontade, o frasco do soro que findou, ou aplicar uma injeção para que lhe seja aplacada alguma dor oculta dentro do peito em frangalhos. Apesar dos pesares, acredito e vou acreditar sempre, que a sua enfermidade, seja ela qual for se pareça com aquela nuvenzinha vadia que aparece lá no azul do alto céu e, depois, logo em seguida, some misteriosamente nos confins do horizonte.

Por assim, embora não podendo me ouvir neste momento, saiba, minha querida cunhada, que a vida é um vício gostoso, como o cigarro na boca do tabagista. O fumante, a cada dia que passa se prende a ele e, com o correr inexorável dos dias, dos meses e dos anos, se torna seu escravo incondicional. Como ao ato de fumar, não ficamos sem respirar. O cigarro é para alguns, como o ar benfazejo que absorvemos para continuarmos vivendo. Essa entrega ao vicio nos quebra as amarras, ao tempo que nos põe de mãos atadas. Basta, pois, Eliana, que você se entregue a esse vicio e, como um fumante inveterado trague a vida, fume a vida que está ao seu lado, esperando apenas que você a acenda. Daí para frente, o desejo de seguir a caminhada lhe sustentará os passos em busca de novos horizontes.

Pela vida a fora, desde o nascimento, a gente começa um longo processo de definhamento involuntário. Com o correr dos anos, perdemos a força, consumimos, aos poucos, e lentamente, nossos sonhos, desejos e vontades. Largamos também, nessa trajetória, a margem da estrada, esquecida, a virtude maior que nos é dada sem que por ela precisemos pagar um centavo: a paz de espírito. Viver, portanto, minha querida cunhada, é não ter tranqüilidade, é lutar todos os dias contra as intempéries ocultas que nos atinge o centro nevrálgico do coração pelos labirintos insondáveis da alma minada pelo peso iracundo do tempo que o destino matreiro nos reservou. O que estou pretendendo dizer é muito simples. Não desista desta luta, não decline do vício. O vício de viver, claro. Continue dependente dele. Cada dia mais e mais. Não pare agora. Lute, peleje de unhas e dentes, esbraveje, grite, mas vá à guerra com todas as forças que eu sei, e que todos nós sabemos, existe dentro de você. Deixe que o vício da vida, aliado a brisa terna da vontade de querer, invada e consuma suas entranhas por inteiro. De a volta por cima. Regresse para a Carol, para o Claudio, para sua mãe, seus irmãos, enfim, para você mesma. Se de esse presente. Na verdade, cunhada, na verdade o que todos nós almejamos, é que você, Eliane, volte correndo para junto de todos nós.

(*) Aparecido Raimundo de Souza é jornalista.