Gentilezas
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
“...Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
A palavra no muro
Ficou coberta de tinta...”
Com certeza foram os vândalos. Essa turma de garotos desocupados que andam por ai, pela calada da noite, pichando as paredes das casas, as portas dos comerciantes, as entradas e saídas das residências. Foram, sem dúvida alguma, esses delinqüentes recalcados que vivem à margem da sociedade, em busca de um mundo que não existe. Os mesmos que fumam craque, que cheiram cola de sapateiro, que vendem buchas de maconha. Talvez os mesmos que estão acostumados a apertar o gatilho de uma arma de fogo e sem mais nem menos tirar, por trinta moedas de prata, a vida de um ser humano.
“...Nós que passamos apressados
pelas ruas da cidade
merecemos ler as letras
e as palavras de gentileza...”
Naquele muro enorme defronte a casa onde moro, alguém havia escrito um poema. Não de Neruda, ou de Quintana, tampouco de Vinícius ou Drumonnd, mas de um desconhecido. Com certeza de um ser solitário que ama a vida e dela procura tirar o que há de melhor.
“...Há algo sempre em ti que me provoca
E me apaixona como adolescente,
Paixão febril, loucura inconseqüente
Que no âmago do amor perene toca.
No mundo do carinho estou carente
Como a ave sem ovos, que não choca,
E sôfrego, meu sangue se empipoca
Nas convulsões do sexo e da mente.
Meu membro vibra ao tato das tuas coxas,
As minhas veias tingem-se de roxas,
E o meu tesão deságua-se precoce;
E não consigo conseguir-te orgasmo,
Te quero em demasia, vão pleonasmo,
Num gozo que te roubo sem ter posse...” (*)
Pois é! Apagaram tudo. Destruíram, danificaram, tiraram do muro enorme aquelas palavras bonitas que faziam a gente crescer por dentro, que embalava nossos sonhos, e que nos fazia pisar em estrelas, voar muito além da imaginação alcançada pelos olhos. Não sei porque. Pintaram tudo de cinza. Estraçalharam as gentilezas que um poeta, mais que um poeta, um profeta havia deixado para nós, “nós que passamos apressados”, por essa rua, por aquela outra, enfim, pelos becos, guetos e vias dessa cidade enorme, disforme, agitada, conturbada, cheia de mistérios e dissabores. Apesar da tinta, eu lembro:
“... Minha primeira palavra
Foi um Ah...!
Não porque tivesse nascido,
Mas porque havia ficado
Em silêncio por muito tempo...”
Marisa Monte tem razão quando canta, mais que canta, encanta:
“...Nós que passamos apressados
pelas ruas da cidade
merecemos ler as letras
e as palavras de gentileza...”
Não há dúvidas. Essas palavras ficaram presas no vai e vem do pincel. As gentilezas do pensador anônimo estão cobertas de tinta. O muro branco, enorme, ficou vazio, mudo, tristonho, coberto de tinta. Pintaram tudo de cinza. Todavia, ainda assim, e sobretudo, o que no muro estava escrito, não se apagou da minha mente. E certamente não se apagará, jamais, daquelas que igual a mim buscam no amanhã um porvir melhor. Mesmo que no frio da imensa solidão hibernal, cujo vento cortante congela narizes orelhas e lábios, ainda assim há de prevalecer o bom senso das pessoas sensatas e de espírito tranqüilizador.
Não tenho, bem sei, como saber quem destruiu o cartão postal que havia no muro. Quem apagou o “faça o amor, não a guerra” e o “dê uma chance à Paz!”, deixando em seu lugar um lençol de lama cinza como a esconder o rastro dos que passaram às carreiras, temerosos de serem descobertos por alguém que amava cada palavra que ali estava escrita. Mas em mim vão permanecer gravadas a fogo:
“...O mundo é uma escola
A vida é o circo
Amor palavra que liberta
Já dizia o profeta...”
O mundo é uma escola. Esses infelizes que pintaram o muro de cinza, palhaços rindo de si mesmos, diante da estupidez a que estão presos, ficarão boquiabertos diante das cicatrizes abertas em suas testas. Obras deles. Muitos se ferirão. Outros se arrependerão das loucuras, não só das loucuras, mas igualmente das dores e dos anseios daqueles que passaram e continuarão passando diante do muro coberto de cinza, à espera das gentilezas que antes embelezavam a vida e o coração de quem simplesmente caminhava, por ali, despreocupado, e parava, extasiado, boquiaberto, diante do muro.
(*) Momento musical: Mariza Monte CD Gentileza
(**) (Há Algo Sempre Em Ti que Me Provoca de Jorge Tannuri, in “Sonetos Fesceninos”).
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
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