quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

"CAMINHO SEM VOLTA"

Caminho sem volta

Aparecido Raimundo de Souza

“A jornada através das sombras que agora vamos acompanhar poderia ser a nossa jornada”.
Rod Serling.

Ana Angélica sente sua alma rés ao chão. A mente rodopia por fronteiras indistintas e instâncias opacas, numa bagunça tremendamente incontrolável. Marcha dentro de si um troço pesado que sufoca o corpo inteiro. A cabeça parece cindida em mil pedaços. As vistas estão enfermas embaixo dos óculos de grau vencido. No peito, o coração teima acelerar descompassado, como se alguma coisa anormal o estivesse agitando. As pernas bambeiam, os pés doem apertados dentro dos sapatos de coriáceo vagabundo. Até as roupas que lhe cobrem a nudez, pesam como chumbo sobre o corpo magro. Atrelado a isto, estranho mal súbito insistindo dominar o ambiente como se o universo fosse acabar no próximo minuto.
Por que a modorra apática, e a desagradável sensação de fadiga lhe transformando a carcaça em estrupício? E olha que só contava poucos anos de idade...
Aquele dia (como tantos outros) transcorreu pesado e frio, com a mesma miscelânea circense de sempre. As horas lhe enterraram num sepulcro hostil e inviolável, como se a vida lhe tivesse tamponado num buraco fundo e sem retorno. E aquele maldito quarto desgraçadamente iluminado completava o quadro dantesco da triste e malfadada sina. Tentara, por diversas vezes, dominar o astral, escapar da turbulência repulsiva; fugir da alienação inconcebível e poderosa. Mas o espírito perturbado a colocava em posição inferior, totalmente sem forças, carente e muito só. Outras ninfetas zombavam da sua cara, escarniavam pontos frágeis, motejavam de sua posição ridícula. Na verdade, a galera em peso aguardava pacientemente sua entrada nos labirintos obscuros da neurastenia.
Com os pensamentos embaralhados e em tumulto desordenado, se perguntava aflita, como caíra tão rapidamente naquela incúria, deixando-se levar pelo injustificado das incertezas e das horas tediosas da solidão? Onde ficara, onde deixara a vontade de vencer os obstáculos, transpor barreiras e saltar infortúnios inesperados?
Sem obter respostas à altura dessas indagações, Ana Angélica lamentava ter deixado o acaso dominar sua existência a ponto de vegetar ao deus-dará. Afinal de contas, qual o motivo, ou melhor, o que ensejou toda aquela transformação em sua curta jornada?
Pôs-se, de repente, a lembrar o passado. Ah, o passado! Fazia pouco mais de seis ou sete meses, seu pai lhe colocara no olho da rua. Motivo? Uma gravidez indesejável. Até então Ana Angélica era a melhor filha do mundo. Com a revelação do exame laboratorial feito às pressas, a bela perdeu a posição de “princesa” para aquele cidadão que gozava da mais alta reputação na cidade. Na verdade, o tal cidadão se constituía na autoridade máxima do judiciário local: o juiz! Como representante da lei e da ordem, o matriarca precisava dar exemplo. Nesse pensar, o velho genitor virou-lhe as costas mostrando a porta da rua e escancarando a crueldade que começava do portão que se abria para os infortúnios e contratempos da sorte. A decadência da moça tornou-se maior ao procurar abrigo na casa do namoradinho que lhe jurara amor eterno. Onde ficara esse amor? Leandro, o pai da criança, descendente de tradicional família, ao saber da novidade da prenhez, deu linha à pipa, jogou para o alto os anos de faculdade, o consultório, a clínica cardiológica, os clientes e, o que é pior, o comodismo de viver às expensas paterna. Na surdina, escudado pela calada da noite, o doutorzinho deixou o lugarejo à horizontes ignorados.
Em povoados de extensão limitada, um fato inusitado voa na velocidade da luz. Estar grávida, a filha única do juiz, naquele fim de mundo, onde Judas perdera as botas, num piscar de olhos e sem muito esforço, uma tragédia familiar comum nas grandes metrópoles se agigantava. Virara chacota na boca suja do povo em questão de segundos. E foi o que aconteceu. Envergonhada, sem comida e teto, e ainda, a agravante da fuga do pai da criança, a solução plausível culminou por embarcar no primeiro trem. Veio com mala e cuia, aportar em São Paulo, ou mais precisamente na Estação da Luz. Sem condições de sobrevivência, não demorou encontrar os degraus mal cheirosos da prostituição. Neles, Ana mergulhou de cabeça até a raiz dos cabelos.
Bonita, formosa e gentil, não lhe faltavam noitadas regadas a cervejas e bebidas baratas. Os fregueses variavam: ora saia com um marginal, outra carregava para a cama um gringo desses bem nojentos. As vezes dormia com almofadinhas elegantes, casquilhos vestidos a rigor ou efeminados. A maioria deles, entretanto, um ponto em comum. Drogados e viciados em maconha e cocaína. Norte igual, o espaço que mediava entre a concepção e o nascimento não interrompia a hora derradeira, ao contrário, diminuía, diminuía, diminuía...
Nessa pressa de vida fácil, o tempo corre com rapidez impossível. Voava, para Ana Angélica, como um pégaso desgovernado, trotando atabalhoadamente na direção do despenhadeiro fatal. Atiçada pela elevada valorização do corpinho esbelto e garboso, a matrona - dona do bordel, não perdia clientes - longe disso -, multiplicava o conjunto de paroquianos como fieis num culto religioso.
Os que freqüentavam o prostíbulo só queriam desfrutar dos chamegos e das carícias daquela elegante bem proporcionada e sensual, segundo eles, caída do céu, como um anjo em forma de gente. Por essa razão, a cafetina, conhecida como ”Maria Padilha”, a partir do momento em que resolvera abrigar a pequena pérola nacarada, mudou de vida. Como cobrava alto pela exploração da garota, logo expandiu os negócios. Adquiriu dois bons apartamentos no Largo do Arouche, outros no Treme-Treme, na Rua Paim, na Bela Vista e uma quitinete no Edifício Copan, além de um carro zero para desfilar.
Com a mente em desalinho, e sem um policiamento ostensivo para conter a avalanche de misérias e penúrias que atormentava, Ana Angélica continuava a se questionar dessas mudanças bruscas, quando, entrementes, lembrou de uma arma que a colega, que dividia o quarto, guardava num das gavetas da prateleira. Resoluta, impassível, caminhou até lá. Precisava agir rapidamente. Logo a parceira retornaria do programa que fora fazer. Abriu o velho móvel. Lá estava, como imaginava, o final feliz para o seu rosário de dissabores. Um trinta e oito, cano curto, cabo em madre pérola, municiado, descansava envolto entre cachimbos para crack, buchinhas de maconha, calcinhas sujas e sutiãs rasgados. Decidida a não voltar atrás, apanhou o revolver. Segurou as feições contraídas, onde um medo inesperado e quase a saltar boca a fora deixou-lhe, por breves segundos, o corpo em estado de choque. Lentamente se acomodou na banqueta diante do espelho com um pedaço de vidro faltando numa das extremidades. Precisava seguir em frente. Vencer o medo. Não podia titubear. E não o faria.
“- Adeus mundo. Adeus, vida! Meu pai, minha mãe. Por favor, me desculpem!...”.
Num derradeiro ímpeto materno, alisou a barriga, massageando a carinhosa e demoradamente. Oito meses e meio. Oito longos meses... Seria um menino ou uma menina? Que importância teria, ou faria, esse pormenor, agora?
Sem assistência médica e condições de visitar um ginecologista, o feto sobrevivia a trancos e barrancos. Que nome lhe daria? Como seria o rostinho? Com quem pareceria? Talvez, quem sabe, com ela, ou...
Nesse instante amargo, dos seus olhos de menina mulher rolaram algumas lágrimas ligeiras. Recordou-se do pai, da conversa que tivera antes de acontecer toda essa bagunça em sua vida: “- Filha, aequam memento rebus in arrudas servare mentem (¹) – disse ele. – “Jamais entregue os pontos. Lute, esbraveje, seja forte. Agarre a vida, brigue, esperneie. Não desista ainda que todo seu eu interior transpire solidão e agonia”.
Todavia, nessa altura do caminho, aquele bate papo se tornara desnecessário. Ficara sem nexo, como ela, sem rumo, e a esperança que nutria fraca demais. Das palavras sábias do velho pai, só recordações distantes agonizando no peito despedaçado. Entrementes abaixa a cabeça. Monologa com o bebe:
- Perdoe a mamãe, meu neném querido, seja você quem for. Não está certo o que vou fazer. Não tenho o direito de tirar sua vida. Você não vai entender esse gesto, mas... Será melhor... Me alegro interiormente em saber que você não conhecerá esse lado funesto e cheio de agruras e inquietações. Mamãe ama você... Mamãe ama você... Mamãe aaa...
O tiro ecoou forte. Viajou certeiro em busca do alvo fácil. Num instante dolorido, virou uma espécie de loopem tremendamente perverso zoando dentro das quatro paredes. Ato contínuo, pessoas danaram a correr. “Maria Padilha” esmurrou a mesa onde tomava um lanche rápido. Um homem que fazia programa com uma das garotas pulou da cama, vestiu a calça rapidamente, abriu a porta, aos berros, obtemperando para que alguém acionasse a polícia. Em curto espaço uma turba rumorosa cercou o casarão que se vestiu de uma curiosidade ímpar em busca de desvendar a desgraça acontecida.
Nessa hora, pela janela do aposento, se descortinava um crepúsculo vespertino langoroso, um declínio que caia manso e enfadonho sobre a cidade. Ataviado a ele, um vento caricioso soprava, de leve, balouçando o tecido da cortina ensebada. Dobrada sobre si mesma, os dedos entrelaçados como se quisessem segurar a vida que trazia no útero, envolta numa enorme possa de sangue, Ana Angélica, a querida e desejada dama da noite, metida, agora, numa via de mão única e sem retorno, soltava, o derradeiro grito lancinante de estertor. Apesar disso, de toda dor e sofrimento e dos olhos desmesuradamente arregalados, um silencio perene aconchegava-se lhe no semblante contrafeito derramando, por sobre sua tês, um tênue fio de paz e descanso de espírito.
(¹) “Lembra-te de manter o ânimo justo nos momentos difíceis”

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